quarta-feira, 25 de março de 2015

Herberto Helder (2)



Cota: 81.1 HEL


Cota: 821.134.3 HEL



Herberto Helder 1930-2015



Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.


- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.



sexta-feira, 20 de março de 2015

Não gosto de ler (*)

                            

Sorrio sempre que alguém diz: "Não gosto de ler." 

Todo o homem é um leitor. Lê imagens, sinais, signos e palavras. Lê a linguagem das nuvens e sabe que vai chover. Lê a linguagem dos pássaros, a das cabras, a das águas, lê todas as linguagens da natureza. Lê as linguagens que se lêem com a vista, com o olfacto, com o sabor, com o ouvido, com a pele. Para sobreviver na selva ou na tundra, os nossos antepassados dos tempos pré-históricos tinham que ser muito bons leitores. A esta capacidade original de ler veio juntar-se a capacidade de nomear através da palavra. Esse foi um primeiríssimo acto mágico e maravilhoso, fundador da história da humanidade. O próprio mundo na tradição judaico-cristã é criado pela palavra. Segundo oGénesis: "No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas. Deus disse: 'Faça-se luz'. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz e noite às trevas." O criador do Homem e do Mundo disse: "Faça-se luz". Isto é, a palavra gerou a coisa. 

Mais do que isso, a palavra e a coisa ficaram indissoluvelmente ligadas. A coisa contém a palavra. Melhor, contém o nome. E o nome convoca a coisa. Aos olhos de cada ser humano, aquela extraordinária descoberta que era a palavra dita continha uma forma de poder sobre o objecto nomeado. Pelo menos cada palavra era uma forma de um homem se aproximar da verdade nuclear daquilo que era nomeado, da inteireza fragmentada entre céus e terra, água, fogo e ar. 
Nomear seria uma forma de aproximação ao próprio acto primeiro dos deuses na criação do mundo e das coisas. Esse era e é o poder dos analfabetos primários que são definidos desta forma pelo poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Henzensberger: o analfabeto clássico não sabe ler nem escrever, precisa da memória, e tem de exercer a capacidade de narrar. Foram analfabetos que pegaram na palavra e inventaram a literatura nas suas formas elementares, o mito, o conto, a canção, as rimas infantis. E é com esses instrumentos que os analfabetos se relacionam consigo próprios, com os outros, com o mundo, com o correr do tempo. Sem querer idealizá-los ou embarcar na ilusão do bom selvagem, há que lembrar que sem tradição oral não haveria poesia, não haveria livros. A escrita levou tempo a fazer a sua entrada em cena. No entanto, inventada a escrita, durante muito tempo foi considerado preguiçoso aquele que tivesse o hábito de recorrer ao livro, já que, segundo Platão, a sabedoria na sua dialéctica tinha de ser oral. O escrito debilitava o pensamento e destruía a memória. Ao contrário do orador, o texto escrito não era capaz de dar respostas nem se poderia defender quando questionado. A verdade é que a escrita foi uma tecnologia que levou tempo a desenvolver-se e a ser utilizada integral e proficuamente pelo pensamento filosófico e científico, e bastante mais tempo ainda a entrar no quotidiano como um instrumento generalizado de relação individual e, digamos, poética com o mundo, para além da sua função de relatar o real. (...)

De facto, todos nós somos feitos do que vivemos, do que lemos, do que imaginamos e do que escrevemos. Como leitores, preservamos pedaços do pensamento, da emoção vivida ou escrita por outra pessoa para nos tornarmos nós próprios em participantes de um acto de criação, uma forma de diálogo que desenvolvemos connosco próprios, com o mundo e com o tempo. É a leitura e a escrita que nos permitem habitar o tempo para trás e para a frente, no sentido da memória, ou da esperança. Vivemos um tempo dominado por uma economia que mata, como diz o Papa Francisco, uma economia que reduz o entendimento da complexidade do mundo, que vê a cultura como mercadoria e a ciência como estrito instrumento prático. Esta economia reduz a vida dos homens a uma coisa sórdida e limitada em que o desejo é estereotipado e a vida é uma prisão chamada tempo presente.

A figura que há tempo domina a cena social é a do “analfabeto secundário”. Pode ser um ministro, um gestor, uma empregada de caixa de supermercado. Sabe ler e escrever mas diz com frequência que não tem tempo para ler, tem coisas mais importantes para fazer. É activo, adaptável, tem boa capacidade para abrir caminho, safa-se na vida. Está muito bem informado sobre os importantíssimos assuntos do dia que amanhã esquecerão. Sabe ler as informações de uso dos objectos que compra. Sabe usar os cartões de crédito e sabe passar cheques. Vive dentro de um mundo que o afasta hermeticamente de tudo quanto possa inquietar a sua consciência. A atrofia da memória não o preocupa. Aprecia a sua própria capacidade para se concentrar em nada. Vê a cultura como espectáculo ou mercadoria. Não tem a menor ideia de que é um analfabeto, analfabeto secundário, mas analfabeto.

A sua escrita está reduzida ao mínimo. O seu ideal é a televisão, as redes sociais, o SMS. Habita o território do lugar-comum e alimenta-se de doses fartas das "reflexões" de comentadores políticos, económicos, desportivos e outros produtos do pensamento único.

(*) José Fanha, Comissário do 1º Encontro de Literatura Infanto-Juvenil da Lusofonia.



Artigo publicado no jornal PÚBLICO a 20 de janeiro de 2015



sexta-feira, 6 de março de 2015

João Magueijo (*)


(disponível na BE dia 10)


Um roteiro  de  cómicos  fins  de semana  mal  passados e tentativas  frustradas de  fazer  férias  em Inglaterra servem de ponto de partida para uma viagem pela cultura anglo-saxónica,   pelos olhos de um cientista português radicado no Reino Unido há mais de vinte anos e do qual estamos habituados a ler obras de divulgação científica.

Bifes Mal Passados é alternadamente hilariante e sério, convidando a uma reflexão sobre a identidade cultural e incitando os portugueses a despojarem-se de complexos de inferioridade.


                                                                                             
                                                           Cota: 50-MAG

Em Física basta dizer-se a palavra «luz» para que todos entoem «nada se move mais depressa do que a luz» - o que de facto é verdade. Mas a luz tem outra propriedade espantosa: propaga-se a uma e uma só velocidade, que é uma das constantes da natureza. Esta ideia foi consagrada por Einstein na sua teoria da relatividade restrita e é um dos pilares da física moderna. Mas se não for correta?
Em Mais Rápido que a Luz,  João Magueijo propõe uma especulação extraordinária: que a velocidade da luz tenha sido maior no universo primordial.



Cota: 539.1-MAG


Na noite de 26 de março de 1938, o físico nuclear Ettore Majorana embarcou levando consigo uma grande quantia de dinheiro e o passaporte. Nunca mais foi visto. Até aos nossos dias, o seu desaparecimento permanece um mistério.

Em O Grande Inquisidor (alcunha por que Ettore Majorana era conhecido entre os colegas), o físico teórico João Magueijo conta a história de Majorana e do seu grupo de investigação, responsáveis pela descoberta casual da fissão nuclear, em 1934. Quando Majorana, o mais brilhante do grupo, começa a perceber as implicações potencialmente letais da investigação, fica perturbado. Ter-se-á suicidado? Terá sido raptado? Terá encenado a sua própria morte para se retirar da investigação?

Magueijo relata a vida trágica de Majorana e o seu desaparecimento bizarro ao mesmo tempo que nos fala das mais interessantes personalidades da ciência do século XX. Oferece-nos uma visão surpreendente dos meandros do mundo científico - tanto as suas dificuldades éticas quanto as suas por vezes complexas dinâmicas de grupo. O resultado é uma obra arrebatadora que dá conta da descoberta extraordinária de Majorana - o neutronio de Majorana - e sugere novas pistas para um dos mistérios mais intrigantes da ciência.

______________


(*) Professor de Física Teórica no Imperial College de Londres, onde foi durante três anos Research Fellow (investigador) da Royal Society. Foi cientista convidado das Universidades da Califórnia em Berkeley e de Princeton, tendo-se doutorado em Física teórica na Universidade de Cambridge.


PÚBLICO



No Ano  Internacional da Luz e dos 100 anos da Teoria da Relatividade de Einstein, o PÚBLICO escolheu o Tempo como tema para celebrar os 25 anos do jornal e convidou o físico teórico João Magueijo para diretor por um dia desta edição especial. [...]
Quando decidimos celebrar a ciência, área de saber à qual o PÚBLICO sempre deu enorme valor, percebemos que íamos mergulhar num processo de desmultiplicação. [...]
Prepare-se para a viagem, Não será preciso cinto de segurança. [...]
Este é o nosso presente de anos para si. Inclui textos de João Magueijo, [...], a cosmóloga Marina Cortês conta como quase morreu a pensar em Einstein. O astrofísico Vítor Cardoso leva-nos num passeio sobre a nossa visão do Universo ao longo do último século. O físico Carlos Fiolhais faz luz sobre o grande legado de Einstein. [...]
Como a velocidade de rotação da Terra está abrandar, de vez em quando os relógios atómicos de todo o mundo precisam de ser atrasados um segundo. Explicamos porquê.
Vhils começará por levantar a ponta do véu de um projeto que culminará no Verão com 25 desenhos que o artista fez a partir de 25 capas do PÚBLICO. Se tiver tempo.

in Editorial.



O nº  9090 de 5 de março está disponível na biblioteca.
Edição grátis.



Clube Manga (2)



ANIME E REALIDADE

O que distingue o anime, animação de origem japonesa, de outro tipo de animação?

A expressividade dos seus personagens representada através dos seus olhos: grandes, muito bem definidos e cheios de brilho. O resto da face e do corpo caracteriza-se por nariz pequeno, cabelos longos e corpo esguio. As figuras tendem a constituir uma caricatura ou estereótipo: ora perfeitas e equilibradas, ora apresentando características peculiares (por exemplo a deformação das feições) levadas ao extremo. Os cenários são muitas vezes dispensados. A estética manga caracteriza-se ainda pela simplicidade e espontaneidade do traço, geralmente a preto e branco, feito a tinta nanquim, mais conhecida como tinta-da-china.

A profundidade da mente dos seus personagens expressa pelo olhar, pela linguagem gestual e corporal, pelo movimento e pelo contraste de luz e sombra. Nos filmes de anime os efeitos sonoros que indicam a chuva ou o vento intensificam a sensação de silêncio, reforçando a interioridade dos personagens. As músicas de abertura (opening) destes filmes sublinham também esta dimensão complexa da mente humana. O enredo do anime é geralmente cheio de detalhes e profundidade e os seus personagens pensam mais do que falam e vão evoluindo ao longo da história: nascem, crescem, casam-se e morrem. Todos estes aspetos combinados permitem ao leitor sentir o que os personagens destas histórias realmente sentem e é por isso que o anime japonês representa melhor o ser humano que o comics ocidental.

O espírito japonês é de conformismo, disciplina, sacrifício e uma certa rigidez e, mesmo, conservadorismo moral. A cultura japonesa marcada por rituais como os da cerimónia do chá, do tirar dos sapatos ao entrar em casa, do uso de uniforme de marinheiro por parte das jovens em idade escolar, da hierarquia familiar que toma o pai como o chefe de família, dos quimonos trajados por homens e mulheres em cerimónias tradicionais, a procura de templos para, através da oração e da entrega de um bem valioso (uma moeda, um anel…), formular um desejo…
Dependendo da história do anime, questões sociais, como o bullying, o tédio e a rotina, a dificuldade de relacionamento social e adaptação à realidade - os indivíduos que não fazem nada na vida (neet) ou os que ficam fechados em casa (hikikomori), os otakus (leitores fanáticos de manga que se isolam) ou os heróis. Existem diferentes tipos de heróis e cada um deles dá origem a um subgénero diferente de anime. Os heróis mais populares são: os que lutam e participam em competições desportivas servindo-se de artes mágicas ou de tecnologias – shônen (garotos); os que buscam o amor (sobretudo dirigidos a um público feminino) – shõjo (raparigas) e os que usam fetiches e encaram com grande naturalidade a sensualidade e o sexo como forma de compensar a elevada exigência da vida pessoal e profissional – hentai.
Pelas razões apontadas é tentador para o espetador de anime transformar-se nos seus personagens favoritos. O cosplay com as suas lojas, apresentações, concursos e sessões de fotografias corresponde a esta recriação de um avatar.
Através do anime o espetador adquire uma consciência de si próprio, dos outros e do modo de funcionamento do mundo exterior que de outra forma não teria, pelo que aquele que aos olhos dos outros parece ser um mundo fantasioso transforma-se afinal na sua própria vida e realidade.

E, afinal, o que é a realidade física, as coisas materiais, se não a mera experiência que dela temos? Se elas existem independentemente do sujeito que as apreende nunca o poderemos provar. O que habitualmente percebemos de modo direto não passa de uma mera aparência. Resta-nos sempre a dúvida de que talvez não exista nada. E como provar o contrário?

Clube Manga: Daniela Fernandes, Kathy Seibert, Luís Cerqueira, Luís Basto, Ricardo Santana e professora Liliana Silva