O olhar de Clarice
Antes de a vermos, é ela que nos vê. Ao fundo da sala, o olho de Clarice emerge na escuridão. Só o olho em grande plano, a curva da pálpebra, a ténue sobrancelha, as finas pestanas, um ponto de luz na pupila. Quando nos aproximamos percebemos que imagem é transparente. Por trás, uma frase: «Ver é pura loucura do corpo». Não há melhor resumo do que foi a vida e a escrita de Clarice Lispector. [...]
A primeira sala é panorâmica. Eis Clarice nas várias idades, o rosto transformando-se, ganhando sombras e uma espécie de alheamento como se tudo o que importa estivesse na escrita e a escrita nunca chegasse para refletir o prodígio do mundo. Não há aqui explicações, enquadramentos biográficos, cronologias. Só palavras nas paredes: «O nome da coisa é um intervalo para a coisa». Qualquer explicação de Clarice seria um intervalo entre nós e Clarice. Mais vale por isso a nudez das palavras em bruto, isoladas, arrancadas dos livros, sem contexto, aproximando-nos de uma perplexidade essencial: « Escrevo pela incapacidade de entender sem ser através do processo de escrever». [...] Clarice sempre soube que escrever é uma maldição, mas «uma maldição que salva».
As palavras da escritora saem dos livros e colam-se à pele de quem as lê. É essa a sua força tirânica. [...]
Chagamos à sala do arquivo, gavetas de alto a baixo, mais de mil, embora só 35, com chave, se abram à nossa curiosidade. Lá dentro: documentos, rascunhos, edições estrangeiras das suas obras. A sala é uma cápsula de memórias. Vale a pena puxar uma das cadeiras e ficar ali, lendo tudo o que há para ler. [...]
À saída, Clarice permanece um mistério. A exposição sabe a pouco. E ainda bem.
O resto temos de procurar nos seus livros e é para os livros, sempre para os livros, que somos empurrados.
José Mário Silva, Cartão de Leitor, in revista LER. pag. 18
O nº 124 da revista LER, maio de 2013, está disponível na biblioteca
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